A cruz

Dizem os antigos que "cada um só recebe a cruz que pode carregar", ou seja, "você apenas recebe da vida as dores que é capaz de suportar".

O curioso é que por mais que a minha mente tenha bloqueado durante anos a lembrança, eu já vivi essa expressão por duas vezes, ambas no mesmo ano, uma de maneira literal e outra de maneira simbólica - e posso confessar que ambas foram muito dolorosas.

O ano era 2008, eu estava muito feliz pela partida de um grande amigo que havia conseguido um bom emprego - imagino eu - e estava deixando a cidade para seguir sua vida, contudo, uma das suas atribuições anteriores era a de coordenador de grupo de jovens, função esta que o mesmo me delegou pelo motivo acima descrito - talvez aí estivesse começando o meu calvário.

Devo confessar que aos 17 anos, eu não era uma das pessoas mais responsáveis do mundo, - e de certa forma continuo não o sendo por mais que agora eu saiba o que eu preciso fazer na vida - eu possuía uma visão de mundo muito inocente, - para não dizer infantil - porém, precisaria assumir responsabilidades e levar à frente um grupo de jovens e assumir todas as implicações do cargo.

Uma delas, - embora não tão obrigatória assim - era a organização de um teatro na época da Páscoa - algo bem comum diga-se de passagem - porém, nesse ano a ideia era um pouco mais diferente, o objetivo era encenar as últimas horas de Jesus, desde sua condenação até sua morte.

Dentre todos os envolvidos no grupo, - sinceramente não por qual critério - ficou definido que eu representaria Jesus nesta encenação, sendo então obrigado a caminhar um trecho de cerca de um quilômetro levando uma cruz de madeira nas costas.

Não sou capaz de descrever o misto de sentimentos trazidos por uma experiência como esta, ainda mais para quem tem um problema bastante sério com energias, - ao ponto de precisar gritar para 'eliminar o peso' de algumas cenas interpretadas - some-se a isso uma história já bastante triste e para piorar, uma mãe bastante sensitiva.

Parece que de alguma forma estranha certas coisas se combinam, pois no início da encenação era uma tarde ensolarada, porém, quanto mais se aproximava 'a crucificação' o céu ia escurecendo, chegando ao ponto de caírem algumas gotas de chuva quando 'eu estava sendo crucificado'.

Impossível descrever a dor de estar preso em uma cruz - realmente com dor física, afinal, um quilômetro de caminhada pode ser pouco mas imagine uma procissão, ou seja, com doze paradas no caminho, inclua uma cruz de madeira que embora no principio estivesse leve fosse 'ganhando um quilo a cada dez metros' além, é claro do fator emocional - somado a tudo isso a dor de ver sua mãe sofrendo como Maria, vivendo aquilo como se fosse algo real e chorando o pesar de ver seu filho numa posição tão incômoda.

Embora à época eu não tivesse a noção da profundidade deste evento na minha vida, o tempo se encarregou de mostrar o significado de cada uma das coisas que eu vi nesse dia, coisas que eu nem me lembro com tantos detalhes visuais, mas sinto muito fortes quando paro para pensar em tudo o que aconteceu nessa tarde.

 Por mais que para muitos jovens/adolescentes o ano da sua formatura seja um ano especial, o meu ano de formatura foi - talvez disparado - o pior ano que eu tive até os dias atuais por tudo o que aconteceu.

Talvez a dor vivida pela minha mãe ao assistir a um filho sendo crucificado - por mais que tenha sido em uma encenação - tenha sido uma forma de prepará-la para assistir 'a outra crucificação' que aconteceria no mesmo ano, muito mais dolorosa e dessa vez sem qualquer tipo de encenação.


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